Quando surgiram, os radares foram apelidados de, e cito de memória, um “atentado aos direitos dos condutores”, uma “caça à multa” e outros protestos quejandos, vindos de um grupo de pessoas que, não sendo automobilista profissional, pretendia fazer finca-pé dessa regalia de usar algumas ruas de Lisboa e Porto como pistas para os bólides. Uns protestaram porque achavam tudo muito natural, outros, mais temerários, até se atreveram a falar em ganhos ou perdas de tempo e até de produtividade. Enfim. Compreende-se este alarido. Para o curioso, não deixa de ser extremamente irónico haver um grupo de pessoas dispostas a perder tempo a defender os direitos dos automóveis. Mas não é assim tão simples.
Os resultados até são indesmentivelmente positivos. O efeito psicológico do número 50, envolto numa auréola vermelha lembra esse limite que, no velocímetro, está logo no princípio da escala. 50km/h. É esse, afinal, o limite previsto pelo código da estrada e que tem razão de ser: a partir dessa velocidade, um impacto entre peões e automóveis é quase uma garantia de morte certa para um deles e de pena suspensa ou ilibação para o outro. Há, assim, uma prevenção de segurança por precaução das velocidades praticadas; e os próprios números de sinistralidade, segundo a Polícia Municipal, têm diminuído.
Não deixa de parecer absurdo, porém, ao automobilista comum, que o seu bólide, marcando velocidades até, pelo menos, os 120km/h (o limite nas auto-estradas) tenha que se restringir a essa mísera meta de 50km/h nas cidades. Uma miséria. Não se compreende. Se o código da estrada apresenta limites de 50km/h para as localidades e de 120km/h para as auto-estradas – o percurso comum do automobilista comum que reside num subúrbio – porque teriam as empresas construtoras de automóveis construído motores que permitem ultrapassar esses limites sem dificuldades? Porque somos constantemente bombardeados com a potencial rapidez e robustez dos automóveis, escarrapachada de forma quase pornográfica em anúncios de rádio, televisão e revistas?
Estremunhado, na cama, é frequente ouvir da rádio um anúncio da Autoridade para a Segurança Rodoviária com gritos e música melancólica, logo seguido de outro apelando o leitor a comprar um carro e das respectivas características.
Mas os absurdos não acabam aqui e, para mim, nem são sequer os mais graves. Não sei qual dos fenómenos foi responsável pelo outro; desconfio até que sejam mutuamente originantes. Basta olhar para as estradas em que foram colocados os radares. São largas, desérticas, de pelo menos duas faixas em cada sentido, sem edificado e algumas até têm um ou outro peão, que se aventura num ambiente que não é o seu. São autênticas auto-estradas urbanas que rasgam a cidade. Perante este tipo de estrutura, como não acelerar para além de 50km/h?
Foram os urbanistas que também permitiram, através da forma dada à cidade, que os condutores tenham essa prática espontânea de acelerarem acima do limite legal. As estradas com radares são hoje elementos estranhos ao seu tecido e que foram construídas com o propósito de satisfazer os paradigmas de velocidade e poupança de tempo. Paradigmas falsos.
Medidas avulsas como os radares são bem-vindas mas devemos recordar-nos que são remendos possíveis no erro crasso de origem. Como alguém que tendo começado a construir a casa em areias movediças acha que tem de mudar a cor das paredes.