Uma das consequências mais danosas da implementação maciça do automóvel nas cidades foi a reorientação do planeamento das estruturas de acordo com a sua lógica; uma reorientação que sacrificou muitos dos outros elementos da cidade, nomeadamente o peão e o espaço público.
Toda a potencialidade que um determinado terreno tem para assumir uma função, seja um jardim, um parque, um bairro habitacional, comércio, escolas, etc é reduzida apenas a uma função quando se constrói. Voltar atrás é muito difícil porque na cidade não se apaga uma estrutura como se apaga uma assinatura. Mas enquanto se assumir que é legítimo obedecer à necessidade voraz de espaço do automóvel, não questionamos que a potencialidade de um espaço seja frequentemente redireccionada para novas estradas.
O ciclo perpetua-se da seguinte maneira: 1) criam-se vias para os automóveis poderem circular 2) facilita-se a aquisição e a guarita do automóvel, através de fiscalização inadequada e de estacionamento quase gratuito 3) numa certa escala de tempo as vias entopem e não escoam 3) obedece-se à procura, mantendo-se a ilusão que automóvel éé sempre sinónimo de ganho de tempo através da velocidade e, voilá, 1) outra vez
Já o quase esquecimento do peão é, quanto a mim, muito mais misterioso porque é a forma mais básica de locomoção do ser humano. Andar a pé é inevitável e embora alguns sonhos do urbanismo moderno imaginassem a vida no futuro equivalendo a cidade a um gigantesco drive-in, a medida da negligência do peão nas nossas estruturas só demonstra o quão infecciosa é hoje a presença do automóvel na cabeça dos que planeiam as cidades.
Esta negligência do andar a pé está hoje presente nas ditas auto-estradas urbanas: estruturas híbridas e monstruosas que rasgam o tecido urbano, já de si caótico; não são estradas nem avenidas, são apenas um erro crasso de planeamento e a vontade de continuar o paradigma da velocidade: se há congestionamento, criem-se mais acessos, para lá de tudo o que existe e servindo apenas e só o automóvel.
Um exemplo, tirado do blogue Discovering Urbanism e que é delicioso porque mostra precisamente a tal inevitabilidade do andar a pé. A cidade é Brasília, o planeamento é muito moderno mas, teimosamente, lá surge o peão, esse rebelde e que teima em caminhar e criar os seus próprios trilhos, para lá daqueles delineados para o automóvel. A ilusão da velocidade promove o esquecimento do corpo mas é impossível desligarmo-nos dele.
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Um peão que circule ao lado das velocidades permitidas aos automóveis nas vias principais não tem uma percepção favorável da sua segurança nem as condições necessárias para andar. Mesmo que seja esse o melhor caminho entre dois pontos e para as suas escolhas de locomoção (o automóvel não é universal).
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Qual é a maneira mais simples e elegante de criar, simultaneamente, barreiras anti-ruído, ar mais saudável, clima de proximidade e ainda desacelaração de tráfego? Será um sistema inteligente em tempo real geo-referenciado ou qualquer outra parafernália tecnológica? Árvores. Muitas. Uma distância não são dois pontos, é também o preenchimento dos intervalos.