Correndo o risco de ser polémico entre pessoas amigas que normalmente concordam comigo, não posso de deixar de notar que a submissão à lógica da sociedade automóvel está mais difundida do que se possa julgar. Muitas críticas ao paradigma automóvel são também elas feitas do ponto vista desse próprio paradigma.
Eu detesto a atitude do "sê realista, exige o impossível", não está em causa um radicalismo utópico da minha parte. Falo sim em vários casos que não passam de tiros no pé. Concretizo:
1. Vai ser construída uma ponte para peões e ciclistas sobre a 2ª circular em Lisboa (uma via-rápida dentro da cidade) e tenho lido imensos elogios à ideia. Claro que estaremos melhor com a ponte do que sem ela, mas isso não faz da ponte uma boa notícia.
Aceitar a ponte é aceitar que o local do peão e da bicicleta não é à superfície, mas por baixo ou por cima dela. Numa cidade humana, os peões e a bicicleta têm que andar na rua. não ficam com as migalhas do automóvel. Uma estrutura do género da ponte é algo que se vai manter durante longuíssimos anos, logo vai ajudar a prolongar a actual lógica da predominância do automóvel no espaço urbano, ironicamente sob a capa do pró-peão e pró-bicicleta.
2. O movimento pela manutenção das poucas linhas ferroviárias em Trás-os-Montes está em grande com um interessante documentário e várias iniciativas. Aquelas linhas têm um potencial turístico, logo económico, interessante e isso não pode ser descurado. Mas não serão algumas linhas que só servem algumas centenas de pessoas e que só permitem velocidades baixas que vão revolucionar a região. Trás-os-Montes (ou outra qualquer região abandonada) precisa é de ter pequenas cidades onde os jovens tenham possibilidades, onde haja equipamentos sociais e comércio para que não fuja tudo para Lisboa e Porto.
Deste ponto de vista o que é realmente uma vergonha é Bragança, Chaves e Macedo não terem comboio. Vila Real e Mirandela ainda têm linha (com comboios a 20km/h) que nem sei se ainda funciona. Isto sim é importante para a região.
3. A Avenida das Forças Armadas em Lisboa (que liga duas praças centrais da cidade) está tão apinhada de viadutos de vias-rápidas urbanas, que é impossível fazer a avenida a pé. Numa série de reportagens da SIC chamava-se a atenção para existência de uma barreira de betão onde deveria haver uma passadeira. A situação é tão grave que a inexistência da passadeira onde os automóveis passam a 90km/h, é apenas a cereja em cima do bolo.
4. Quando se pensa no quanto custa o uso do automóvel ou no quanto espaço urbano tem que ser sacrificado para que uma única pessoa se possa deslocar de automóvel, fazem-se cálculos que deixariam o lóbi-automóvel bem orgulhoso. O custo não é só a gasolina, nem o espaço necessário se resume à área física do automóvel.
Espero que os "visados" não se sintam ofendidos, nós estamos todos do mesmo lado, mas precisamos de ver o mundo por outros olhos.
Foto do Apocalipse Motorizado que mostra o mesmo tipo de atitude vinda de cicloativistas de Curitiba, numa acção em que pintaram a sua própria ciclovia. Reparem na sua diminuta largura e no mau estado do piso. Neste caso os automobilistas até agradecem que os ciclistas se confinem àquela bermazinha.