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Menos Um Carro

Blog da Mobilidade Sustentável. Pelo ambiente, pelas cidades, pelas pessoas

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Palavras Sábias

TMC, 21.11.11

Manuel Gomes Guerreiro foi secretário de estado da Secretaria de Estado do Ambiente do II Governo Constituticional entre 1976 e 1978.

 

A 22 de Dezembro de 1976 concedeu uma entrevista ao Expresso em que aborda a qualidade ambiental da cidade de Lisboa e a relação populacional que mantém com o resto do país. As suas recomendações e reflexões avisadas informam-nos do quão diferente poderia ser actualmente a cidade e o país.

 

P. Está de acordo com a deterioração a que chegou a cidade de Lisboa? Lixo, sujidade, poluição, etc.

 

R. O lixo na rua, a publicidade de objectos e de ideias nas paredes, os automóveis atravancando os passeios, as mercadorias invadindo ruas e acessos ao metropolitano, os mercados a céu aberto, os papéis a monte e a esmo, os detritos, a sujidade grosseira, tudo isto num ambiente ruidoso que impressiona e magoa.

 

[...] O ruído é outra característica de Lisboa que agride todos os seus habitantes a toda a hora do dia e até da noite normalmente aliado a uma poluição do ar proveniente dos carros movidos a gasolina. Esta situação cria uma enorme dificuldade ao peão para percorrer a pé certas zonas da cidade, aquelas onde deveria ser mais fácil, em especial nesta quadra natalícia que além de tudo deveria ser de bom convívio, de alegria, de solidariedade e de compreensão.

É tempo da cidade de Lisboa definir zonas francas para o peão.

 

A cidade de Lisboa não pode ser nem é uma Brasília fria e distante: é uma cidade aconchegada, de características mediterrânicas, onde as pessoas se

conhecem e convivem; onde na rua se encontram os amigos que num instante resumem a sua vida na esperança de ouvir uma palavra amiga, um incitamento, uma prova de afecto, compreensão e solidariedade que permita recomeçar recomeçar com ânimo a luta diária que a todos a vida obriga.

Em especial na Baixa deve haver uma solução de modo a que permita entregar ao peão zonas bem delimitadas, não acessíveis à máquina poluidora ruidosa e demolidora. O comércio não seria afectado pelo que se tem visto noutras paragens.

 

Além destas zonas inteiramente entregues aos peões haveria necessidade de criar corredores verdes ligando certas zonas da cidade entre si que permitiriam o acesso rápido e agradável de pessoas a pé, de qualquer idade. O acesso à Baixa pombalina poderia tornar-se um passeio despreocupado e atraente. Há quanto tempo se fala em ligar desta forma o Príncipe Real com a Avenida da Liberdade pelo Jardim Botânico e Parque Mayer?

 

A cidade de Lisboa não é monumental, mas é humana. É uma cidade onde o homem trabalha, vive e convive como se toda ela fosse a sua casa. Há que preparar para se manter nesta linha; há que a entregar aos seus habitantes para que a ocupem, circulem e nela vivam com à vontade, alegria e despreocupação.

 

 

P. Perante esta (triste) situação qual a política que a Secretaria de Estado tem desenhada para 1977. Projectos, iniciativas talvez.

 

R. Embora nascida há pouco mais de 12 meses, esta Secretaria de Estado tem procurado conhecer, estudar e sugerir soluções para a cidade em colaboração com a CML e neste momento com o Comissário do Governo para a região de Lisboa, lugar há pouco criado. [...] A Comissão Nacional do Ambiente comemora todos os anos o dia Mundial do Ambiente com várias iniciativas, todas elas apontadas para entregar a cidade, em especial a Baixa, à sua população e em especial à sua juventude. Esta aproveita a oportunidade para cirandar em lugares que normalmente lhe são vedados, a pé ou de bicicleta, realizando jogos, exercícios e espectáculos.

 

Há uma outra iniciativa que esta Secretaria de Estado procura levar a cabo em breve. Refiro-me a cursos de reciclagem de jardinamento onde se estude, discuta e apresente soluções para o tratamento das árvores da cidade, dos bosquetes e dos arruamentos. Repare-se que são elementos indispensáveis à criação da paisagem urbana, retirando-lhe a frieza do betão e da cantaria. Contudo, até hoje sofrem mutilações de tal ordem que mais ficam a parecer grotescos seres, sem beleza nem utilidade, constituindo exemplos indecorosos do procedimento displicente do homem perante a natureza que lhe devia merecer respeito e até admiração.

 

Na verdade, estuda-se um ordenamento para toda a região metropolitana de Lisboa de modo a criar não só condições favoráveis à instalação do homem e das suas actividades, mas também de modo a preservar valores paisagísticos existentes como quintas e áreas arborizadas, solos de elevada capacidade agrícola como é o caso do vale de Loures, onde até já se chegou ao ponto de construir em aluviões.

 

[...] O problema urbanístico e social de Lisboa está em permanente pressão, o que dificulta a sua resolução correcta. Esta deveria iniciar-se pelas cabeceiras do imenso rio humano que começa no interior deprimido, de Bragança a Faro, e desemboca no mar, junto do Tejo. Enquanto o interior não estiver em equilíbrio sócio-económico com o litoral; enquanto no primeiro se nasça e no segundo se morra; enquanto os mais elevados índices de vida e de qualidade de vida se situarem no litoral, haverá sempre uma forte corrente migratória para Lisboa criando problemas que, se até hoje foram graves, tenderão a agravar-se com a impossibilidade de demandarem terras tropicais.

 

A verdade é que o problema não é novo, o que aumenta a nossa preocupação. Será que o não sabemos ou não podemos resolver? No século XVI, Sá de Miranda, escrevendo a António Pereira, queixava-se já de que Lisboa regorgitava de pessoas enquanto que, escrevia, “ao cheiro desta canela o reino se despovoa”. Acabou-se a canela mas mantém-se a pobreza e o desencanto do interior. É de esperar que a regionalização prevista na Constituição e no Plano do Governo nos venham salvar, criando um país estabilizado, sem assimetrias injustas e sem a enorme e absurda macrocefalia instalada em Lisboa.

 

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