Obituário: a linha do Tua
A avalanche de ataques ou, em linguagem moderna, justificações para o encerramento da linha do Tua constituiu-se por vários argumentos, todos eles bastante fracos. Podemos agrupá-los no par "factos/interpretação unívoca desses factos".
1- acidentes com vítimas mortais desde 2008/a linha não é segura
2- poucos utilizadores/a linha não é viável
3- o modelo de negócio da linha do Tua é oneroso e insustentável/uma linha de comboio só deve ser mantida se houver sustentabilidade financeira
4- a auto-estrada de Trás-os-Montes vai ser feita/quem tem uma auto-estrada pode dispensar uma linha de comboio
5- a linha do Tua não é fundamental para garantir o direito à mobilidade das populações/o direito à mobilidade em meios rurais pode ser garantido pelo automóvel e por táxis
6- ou a linha do Tua ou a barragem do Tua/o futuro são as energias renováveis, por isso devemos fechar a linha do Tua
Os argumentos 1 a 3 baseiam-se numa análise simplista porque sincrónica; ignoram que a situação actual de insegurança, de relativamente poucos passageiros e de insustentabilidade financeira devem-se a políticas anteriores do governo e à incúria da CP e REFER que conduziram precisamente ao actual de estados de coisas; a situação da linha do Tua é diagnosticada como se o seu estado estivesse desligado das condições que o provocaram. Ora, quase todas as linhas de comboio em Portugal são insustentáveis financeiramente, mas não é por isso que devem ser tomadas como dispensáveis; além do mais, quase todas elas sofrem manutenção frequente da REFER (no caso do Tua, a última foi em 1991) e têm horários adequados porque são indispensáveis para a mobilidade das pessoas que prescindem ou preferem não usar o automóvel para as suas deslocações.
E com isto chegamo aos argumentos 4 e 5. Em 1991, a linha do Tua foi fechada entre Bragança e Mirandela. O argumento da altura, além da falta de passageiros, consistia na construção da alternativa rodoviária do IP4. Vinte anos e cerca de 200 mortos depois, a situação repete-se com a auto-estrada transmontana a servir agora de bode expiatório para a sangria das ligações ferroviárias. O número de passageiros, assim que trasladados para os autocarros caiu abruptamente. E, estranhe-se, não há agora cenários analíticos que equacionem o desenvolvimento da região com a auto-estrada & com a linha de comboio; ambos os modos de transporte parecem confrontar-se por exclusão e nunca servirem como complementares ao serviço das populações. Para além do mais, o direito à mobilidade é muito diferente da democratização pelo automóvel, algo que o estado assume implicitamente: eu não sou obrigado a tirar a carta, mas devo ser capaz de ter acesso em condições satisfatórias aos serviços mínimos. Ponto. Se não gostam, mudem a constituição.
Por último, o ponto 6. A barragem do Tua dará cerca de 0,4% de acréscismo à produção de energia eléctrica nacional; por sua vez, o crescimento do consumo de energia eléctrica tem crescido 3% ao ano. Equacionar a perda de uma estrutura centenária como necessária ao futuro do país e misturá-la com o misto de publicidade masturbatória da EDP e deste governo cada vez que falam nas energias renováveis deveria chocar.
Hoje nada disto interessa porque o último reduto de defesa da conservação da linha foi arquivado. O Ministério do Ambiente e a REFER já tinham lavado as suas mãos; só faltava ao Ministério da Cultura a sentença final para abrir o caminho à EDP.
Claro que o que se passa em Trás-os-Montes é quase indiferente a muitas das elites lisboetas que à mínima causa da moda dão o peito às balas: oxalá um dia o aturem.