Iniciamos aqui uma nova rubrica. Uma vez que a realidade não são as notícias, tentaremos actualizar o número de mortos nas estradas portuguesas para tentar colar mais ao osso essa trágica realidade que nos acompanha e da qual penso não estarmos bem cientes.
Uma vez que este governo teve a coragem - ou a honestidade - de contar o número de mortos na estrada tal como é feito no resto da Europa, é previsível que a queda no número de mortes registada nos últimos anos torne a aumentar. Até agora, apenas eram contabilizados as vítimas no local; a partir de 2010 passarão a ser registadas as mortes nos hospitais até 30 dias. E isso obrigará a campanhas e a estratégias mais restritas.
A resposta à pergunta feita há uns dias fala por si.
Em três anos e 2 meses morreram nas estradas portuguesas 2543 pessoas.
Cerca de 2 pessoas por dia.
Cerca de 16 pessoas por semana.
De 1 a 7 de Janeiro morreram já 18 pessoas.
Embora as principais causas de morte em Portugal sejam as doenças cardiovasculares e os vários tumores, os acidentes rodoviários assumem o protagonismo nas causas de mortes não naturais. Estimativas apontam para custos anuais equivalente a uma fracção não negligenciável do PIB. E as feridas abertas por mortes tão estúpidas e súbitas demoram muito a sarar.
Claro que as causas são múltiplas. Desde irresponsabilidade individual no que toca a embriaguez, falta de experiência ou fadiga até a problemas estruturais ou de desenho que propiciam uma maior ocorrência de acidentes. Acrescente-se em Portugal ainda alguns factores que considero contribuírem para esta situação:
- falta de tradição na justiça em condenar pelo menos um dos envolvidos em acidentes deste género por homícidio involuntário. A nossa cultura de paninhos quentes e irresponsabilização nunca faz doutrina com um caso; não sei se considerarão que a consciência pesada de um dos intervenientes já é castigo suficiente. Não é.
- ausência de uma campanha de prevenção rodoviária mais agressiva (com imagens chocantes porque a realidade é precisamente essa) que tenha presença constante nos horários nobres de todas os canais.
- falta da presença de uma educação defensiva nas escolas de condução. Por acaso lembro-me que quando tirei a carta a única vez que abordámos a sinistralidade rodoviária o instrutor referiu-se a ela da seguinte maneira: "não estão a tirar uma licença de condução; estão a tirar uma licença de porte de arma".
- Alta percentagem de deslocações feitas em automóvel, quer particulares quer de mercadoria, o que aumenta, é claro, as probablidades de acidentes rodoviários.
Parece-me que uma causa recorrente do mesmo fenómeno que são as mortes na estrada não pode merecer outro nome do que um problema de saúde pública. Arrisco aqui uma comparação Embora fumar não seja um acto tão inócuo (aparentemente) como conduzir, e fumar possa dar azo quer a doenças cardiovasculares, respiratórias ou ao cancro do pulmão, hoje em dia consideramos legítimo que quem queira fumar deva pagar a cada ano mais dinheiro pelo seu consumo; confinamo-los a locais próprios para o seu vício porque de outra maneira prejudicariam a saúde dos demais e não temos qualquer problema em sublinhar nos próprios maços de tabaco quais as consequências prováveis de um fumador descontrolado. Nalguns países são os próprios maços de tabaco que têm imagens do que poderá vir a ser um futuro provável do fumador.
Acho que a comparação é válida porque há muitos pontos em comum. Quanto à vantagem pessoal, um fumador argumentaria que precisa do seu vício para trabalhar, para se concentrar, para simplesmente estar com alguém enquanto conversam. Parece-me precisamente a conversa daqueles que não se vêem a si próprios sem o seu automóvel. Convencidos da própria vantagem individual, atropelavam (no caso do tabaco, até bem há pouco tempo) os malefícios induzidos nos outros, até serem restritos a locais próprios. O mesmo espero que acontença com o automóvel: a sua entrada irrestrita nas cidades tem consequências danosas para o espaço público e para a saúde dos cidadãos, devendo de futuro os seus utilizadores pagarem cada vez mais por essa vantagem injustificada.
Finalmente, não vejo porque a tão laudatória e ridícula publicidade automóvel, presente em qualquer jornal, revista ou placard, não apresenta uma das consequências possíveis do uso generalizado do automóvel ao invés do seu apelo à potência, à velocidade ou à ecologia do veículo. No caso do tabaco as mensagens são explícitas: FUMAR PROVOCA O CANCRO PULMONAR MORTAL. Bom, pode não provocar, é claro. Mas isto é tão exacto como dizer que CONDUZIR PROVOCA O ACIDENTE RODOVIÁRIO MORTAL.
Sou fumador.