A cidade como corpo (II)
A metáfora que encara a cidade como corpo tem várias qualidades interpretativas. Para além do mais, não devemos só apreciar o seu valor metafórico; uma cidade deve ser, tanto quanto possível, um corpo, nomeadamente, um corpo orgânico.
E porquê? Um corpo orgânico tem unidade; as suas partes não são completamente autónomas, antes necessitam de colaborar para que o conjunto possa funcionar; um corpo não é apenas o conjunto dos seus orgãos, das suas partes, mas sim uma certa maneira destes funcionarem. Uma qualquer maleita é rapidamente restaurada localmente enquanto que um dano mais grave numa certa parte pode, de facto, afectar todo o corpo, torná-lo doente.
(clique na opção Ver imagem do FireFox para ver maior - talvez o maior nó rodoviário do país; o planeamento não existe: o que há é uma camada de estruturas adicionadas a outras em diferentes momentos: agrícola urbana, rodoviária, eléctrica: os interstícios sem uso e função assinalam este modo de construír)
Ora, as nossas cidades, no seu desenvolvimento, assemelham-se a tudo menos a um corpo. Ameaçam tornar-se numa amálgama disforme de partes sem qualquer conexão, um conjunto híbrido sem identidade; são apenas um amontoado de pessoas, de prédios, de vias de ligação. Ao chamarmos-lhes cidades pressupõe-se de imediato a sua unidade (porque agregamos tudo isso num substantivo), mas, como atestam os conflitos entre peões e automóveis e a dispersão urbana, as cidades s parecem ser mais modos descontrolados de crescimento de certas partes de um conjunto de coincidências espaciais.
As nossas cidades não funcionam como corpo porque não cresceram num sentido natural: os seus constituinte têm sido construídos de modo avulso. As cidades estão doentes. E tal como não existe um único médico que trate de todas as maleitas de um corpo, dada a sua complexidade, não devemos relegar para as autarquias a elaboração de um plano geral que simultaneamente diagnostique e restaure a saúde da cidade.
(clique na opção Ver imagem do FireFox para ver maior; a famigerada Praça de Espanha, um corpo estranho entre bairros residenciais; talvez esta aberração queira compensar a existência nas proximidades do excelente jardim da Gulbenkian?)
Até porque os urbanistas, arquitectos e responsáveis pelo planeamento, qual corpo médico urbano, têm por hábito a cura de algumas partes como se estivessem desligadas das outras. Isso é totalmente inadmissível. No caso humano, seriam acusados imediatamente de negligência e falta de profissionalismo - por óbvio desconhecimento da anatomia do corpo - mas na cidade, a omissão e o esquecimento de outros constituintes é o que ocorre com mais frequência. Porquê?
A minha opinião é que, tal como um indivíduo não é só a sua mente, também a cidade não pode ser a sua autarquia, o seu corpo dirigente. Há problemas que têm de ser resolvidos e sarados pelo próprio corpo e sem a necessidade de intervenção da mente: uma ferida cicratiza--se sozinha, sem a nossa intenção. Ao mesmo tempo, a autarquia deverá saber quais as partes da cidade a tratar porque, tal como num corpo, a sua pele, o seu sistema nervoso, lhe comunica as respectivas necessidades.
(clique na opção Ver imagem do FireFox para ver maior; Lumiar, Lisboa, séc. .XXI: haverá alguma fotografia que denuncie maior amálgama urbana do que esta? É praticamente possível a um leigo fazer a arqueologia dos seus constituintes)
Seguindo esta metáfora, se os cidadãos são realmente a pele da cidade, o que há, hoje em dia, é um entorpecimento, uma autêntica anestesia geral; ao mesmo tempo, se as cirurgias urbanas se limitarem a obras desligadas do contexto, o que aparecem são baldios, guetos, não-lugares, espaços com apenas uma de várias modalidades possíveis - um corpo não tem constituintes supérfluos, as nossas cidades primam pelo desperdício. À irresponsabilidade dos urbanistas segue-se a despreocupação e o alheamento dos cidadãos. O seu espaço é unicamente o privado e qualquer problema público é relegado em exclusivo para a junta de freguesia ou para a edilidade.
(clique na opção Ver imagem do FireFox para ver maior; Av. Conde Valbom: um bom e raro exemplo em que a parte (tal como um orgão serve o corpo) - existe mas servindo toda a cidade: os automóveis podem circular mas, tal como o piso indica, não há separação entre o espaço dos peões e o espaço dos veículos a motor; há arborização, esplanadas, bancos para relaxar, comércio: estaremos mesmo em Lisboa?)