O automóvel não é um objecto
O facto do automóvel ter uma forma mais ou menos fixa - cerca de cem anos depois da sua invenção, ainda é apenas um motor acoplado a quatro rodas - não deve confundir-nos quanto à sua natureza. O automóvel não é um objecto, ao contrário de um telemóvel, de um relógio ou de uns sapatos.
Os objectos ditos normais são-no apenas e só porque o seu território, o seu sentido, acaba geralmente no seu uso. Claro que há linguagens particulares a cada objecto que permitem leituras semiológicas diferentes mas normalmente usamos um relógio para sabermos as horas, um telemóvel para estarmos contactáveis e um par de sapatos para termos conforto ao andarmos a pé. Os objectos normais vão um pouco além do seu uso, é claro; posso julgar o indíviduo X de uma forma diferente por reparar que há uma espécie de padrão no seu telemóvel cheio de funções adicionais, nos seus sapatos de couro raro e no seu relógio de marca. Neste aspecto, o automóvel não é excepção à função primária dos objectos normais, que é estarem subjacentes a uma função.
O automóvel não é um objecto porque, algures no século XX, transformou-se num conceito, numa ideia que de tão poderosa absorveu as restantes. Foi assim que as nossas cidades passaram a ser desenhadas em função não das pessoas concretas que as habitam mas de uma forma particular de locomoção. O automóvel passou a ser uma ferramenta conceptual ao serviço do urbanismo.
Os rastos desta transformação estão em quase todas as cidades europeias: um centro histórico patusco, convidativo, próximo, com ruas estreitas e pedonáveis que contrasta com a progressiva granulação da malha urbana que fica fora desse núcleo: edifícios pontilhados no território sem qualquer articulação com a envolvência, aparecimento de terras de ninguém, baldios, espaços monofuncionais. É o dito urban sprawl ou estilhaçamento urbano, em português.
Uma analogia talvez ilustre o que foi dito; é como se eu criasse uma casa em função não da escala dos seus futuros utentes mas em função de uma escala muito maior, uma escala gigantesca. Quando os utentes morassem na casa seriam liliputianos; ir à casa de banho seria como ir à mercearia; todos as divisões e objectos lhes pareceriam desfasados da sua realidade. A escala maior foi o que orientou a projecção da habitação e sacrificou a escala real aos caprichos conceptuais do projectista!
É paradoxal que os urbanistas e arquitectos de há vários anos tenham conseguido criar espaços mais acolhedores do que os seus sucessores. Normalmente espera-se que as ideias progridam. Não foi o caso do urbanismo. Por outro lado, os autores dos centros históricos não tinham em mente criar uma cidade para automóveis porque eles não existiam. Criavam-se arruamentos para pessoas, cavalos e juntas de bois. Agora só podemos remediar o sucedido.