E porque razão menos um carro?
Uma recente reportagem da SIC refere que os níveis de ruído em Lisboa são excedidos nas vias rápidas que rasgam - a palavra é mesmo essa - a capital e também nas artérias principais. Estas, como a Avenida da República ou a Avenida da Liberdade, há muito que foram transformadas em pistas de aceleras. Não tanto por permissão legal, apenas por incúria da edilidade.
Outras notícias relatam que os níveis de poluição atmosférica são também excedidos na capital. As partículas que inalamos sem que o possamos evitar têm efeitos crónicos em nós. Ninguém fica doente se passar um dia deambulando em Lisboa. Se o fizer durante vários anos poderá desenvolver problemas respiratórios ou até mesmo uma doença oncológica. É esta dificuldade em traçar a causa e os efeitos dos poluentes atmosféricos que dificulta o estabelecimento de limites legais.
O que é inegável é que no centro destes efeitos perniciosos está o tráfego automóvel. Parado ou em movimento, o carro impossibilita e impede uma maior presença humana na cidade. A ausência de uma quantificação exacta dos efeitos negativos do tráfego automóvel não deve elidir o facto de ser ele o agente mais prejudicial para a qualidade de vida de uma cidade. Estas são as razões científicas.
Não existem dados concretos sobre a opinião de turistas - cuja opinião é tida como mais fidedigna do que a dos cidadãos lisboetas - apesar de sabermos que a imagem que levam não é das mais favoráveis. Também não existem estatísticas sobre o sentimento de insegurança ou desconforto que a circulação rodoviária induz. Tampouco sobre o impacto destas na escolha de um bem imobiliário. Apesar de ser um facto que as cotas de habitação estarem directamente relacionadas com a sua sujeição ou não às agressões da poluição atmosférica ou do ruído. A saúde de uma cidade poderá também ser interpretada pelos seus sintomas. Se esta não consegue fixar pessoas, é porque algo de venenoso obstipou as suas ruas. Estas são as razões estéticas e urbanísticas.
Habitualmente o impacto negativo do automóvel é medido em termos da sua sinistralidade. Apesar das mortes causarem um sofrimento indescritível nas famílias ou debilitações permanentes, ainda aceitamos com bonomia que o número de mortes tenderá para zero em vez de para uma constante. Isto não é nada mais nada menos do que aceitar a necessidade de um número razoável de mortes por ano para que todos possamos usufruir de um bem não essencial. O erro humano é permitido porque aceitável. Uma morte na estrada é vista como um azar ou como uma irresponsabilidade e raramente é imputável aos responsáveis. Estas são as razões jurídicas.
Portugal não é autónomo energeticamente e está longe de o ser. Apesar da propaganda das energias renováveis anunciada pelo Primeiro Ministro ser incipiente e irresponsável, nunca é dito que o país seria mais robusto e mais independente se reduzisse a sua carga energética. Não se trata de razões ambientalistas ou que impliquem o cumprimento do protocolo de Quioto, embora isso seja um motivo desejável. Trata-se sim de que a energia que importamos é obrigatoriamente comprada. E isso impede que mais investimento possa ser direccionado para outras áreas. Além disso, a energia que compramos não é bem utilizada. Nomeadamente, a nível de transportes, as taxas de ocupação baixíssimas e a promoção do transporte individual não nos torna, colectivamente, mais competitivos. Estas são as razões económicas.
Pelo que se adiantou e apesar do estatuto que o automóvel individual tem ao nível da publicidade, da indústria e da imagem que cada um associa a si, não parecem haver razões para mudar a sua presença em Portugal.
O automóvel não é sinónimo de progresso. Se este for a determinação da razão e não uma locomoção estúpida como parece por vezes ser, o automóvel nas cidades passou a estar do lado errado da barricada. Não tem mais sentido estimular o seu uso. Por tudo o que foi dito, pergunto-me porque nenhum político encara com seriedade as seguintes hipóteses:
1) Aumentar e taxar a entrada e o estacionamento na cidade
2) Cumprir os limites legais de ruído e poluição atmosférica
3) Pedonalizar mais faixas de circulação automóvel
4) Estabelecer-se penas mais pesadas para os envolvidos em acidentes rodoviários
5) Estimular o uso de transportes públicos
Porque não menos um carro?