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Menos Um Carro

Blog da Mobilidade Sustentável. Pelo ambiente, pelas cidades, pelas pessoas

Menos Um Carro

Blog da Mobilidade Sustentável. Pelo ambiente, pelas cidades, pelas pessoas

É fisicamente impossível as câmaras serem imparciais sobre o transporte que escolhemos

MC, 22.09.17

Vai à janela.
Repara na largura da estrada e na largura do passeio. Alguém teve de decidir isso.
Repara qual a largura de cada via (faixa) de rodagem, e quantas há em cada sentido. Alguém teve de decidir isso.
Repara se há estacionamento, se é em espinha ou longitudinal, se é contínuo ou interrompido por bancos ou árvores, se houve cuidado para evitar estacionamento ilegal no cruzamento ou se houve condescendência com isso. Alguém teve de decidir isso.
Repara se há bus, ciclovia e qual é o material do passeio, se a estrada é alcatrão ou empedrado e se tem lombas (e que lombas?). Alguém teve de decidir isso.
Repara na velocidade máxima e se alguma vez alguém a controlou aí. Alguém teve de decidir isso.
Repara se há parquímetros, quanto custam, qual o período máximo de estacionamento, se há lugares para moradores. Alguém teve de decidir isso.
Repara se o estacionamento legal ou ilegal é controlado por alguém, quantas vezes é controlado, qual é a multa, quantos pontos se perde na carta. Alguém teve de decidir isso.
Repara se o passeio é um canal livre para os peões, ou se tem obstáculos como pilaretes, cartazes publicitários, bancos, árvores, vidrões, sombra. Alguém teve de decidir isso.
Repara se a rua tem passadeira, passeio rebaixado na passadeira, passadeira levantada, passeio central ou tem barreiras que impeçam os peões de atravessar.
Repara se há paragem de autocarro, paragem de metro ou paragem de taxi. Alguém teve de decidir isso.
Repara na frequência do autocarro, o preço do metro, o imposto de circulação do automóvel, o ar condicionado do metro, o preço da licença do taxi. Alguém teve de decidir isso.
Repara no cruzamento ao fundo, e se ele tem semáforos, quanto tempo abrem os semáforos para cada direção e para os peões, se todos as mudanças de direção são permitidas, qual o raio de curvatura, se há exceções para autocarros, amarelos intermitentes ou botões para os peões pedirem verde. Alguém teve de decidir isso.

Lembra-te que em qualquer cidade há centenas, milhares de troços de rua iguais ao da rua à tua frente, e em todos eles as mesmas decisões tiveram de ser feitas.

É que ao contrário do tipo de fruta que escolhemos comer, da rádio que escolhemos ouvir, do café onde decidimos comer, na mobilidade é impossível as câmaras serem imparciais tratando todos os modos de transporte por igual. E todos estes milhões de decisões que elas têm de tomar condicionam fortemente as nossas escolhas individuais de mobilidade no dia-a-dia.

Quando alguém diz que as câmaras municipais devem deixar as pessoas escolher livremente, ou está a ser burro ou desonesto.

 

 

Vigília pela Linha do Tua

TMC, 16.09.10

Neste sábado dia 18 de Setembro de 2010, das 18h à meia-noite, o Largo Camões, em Lisboa, será palco de uma vigília pela Linha do Tua.

 

A iniciativa está aberta a todos os interessados na conservação desta linha ferroviária de via estreita que até há cerca de dois anos ligava o interior transmontano à Linha do Douro.

 

A intenção de trazer o protesto para os paços da capital foi promovida por várias organizações de cidadania da região de Trás-os-Montes e vem na sequência de vários acontecimentos deste último ano.

 

O filme Páre, Escute e Olhe contribuiu para a sensibilização acerca dos riscos associados à construção de um paredão anexo à região do Douro vinhateiro, património mundial da humanidade; a obra de Jorge Pelicano não pretendeu apenas ser uma resposta à cómica lavagem de imagem promovida pela EDP acerca das vantagens das barragens, como a activa conivência de orgãos informativos como a TSF ou de outros que, pura e simplesmente, negligenciaram através do silêncio novos desenvolvimentos do conflito entre os interesses das populações locais e a construção da barragem que acarreta o desaparecimento da linha. A construção da barragem de Foz Tua é algo dado como adquirido, os movimentos de contestação das populações locais e outros de cariz ambiental não são referidos e a imagem que prevalece é a de que a EDP e este governo estão no trilho certo no que concerne às metas das energias renováveis.

 

Entretanto, o colectivo GAIA tentou divulgar e promover o debate em torno da questão junto das populações das aldeias ribeirinhas. Segundo testemunhos presenciais, a percepção colectiva é a de que os impactes devido ao desaparecimento da linha seriam negativos; revolta e esquecimento eram também vocábulos que surgiam associados.

 

Outra boa notícia é a suspensão da construção e das obras de instalação da barragem de Foz Tua devido à possibilidade de classificação da Linha do Tua como património arquitectónico nacional; enquanto o processo de apreciação classificativo estiver a decorrer, o troço estará salvaguardado. Se o resultado do processo for o esperado, a barragem poderá ter de ser excluída, uma vez que a cota de preserevação da Linha do Tua seria tão baixa que os objectivos iniciais não teriam qualquer possibilidade de cumprimento.

 

Face ao que foi dito, considero que a vigília de sábado concentra características particulares que a destacam de muitas outras:

 

- é uma luta política, apartidária e sem qualquer apoio recorrente dos partidos políticos (se obviarmos Os Verdes);

- é uma luta pelo direito à mobilidade ferroviária que vai contra a tradição política que tem privilegiado os transportes e os acessos rodoviários;

- é uma luta que sublinha que os problemas de uma região (desertificação e interioridade) estão a ser mal geridos e até fomentados pelo centralismo político lisboeta;

- é uma luta contra o logro dos governantes, pela saúde do debate público e pela adesão aos factos;

- é uma luta que representa a distância entre os problemas reais das populações do interior e a consciencialização para esses problemas por parte dos políticos e da população do litoral

- é uma luta que pela dimensão mediática que tem (quase nula) e a que deveria ter aponta para o divórcio que existe entre duas portugalidades: a urbana/litoral e a rural/interior;

 

Trata-se de uma causa sobre um problema concreto - o hipotético desaparecimento de um meio de transporte ferroviário - para o qual poucas pessoas estão sensibilizadas. Atribuo isso à localização geográfica do problema: o interior português. Lá há pouca massa crítica, logo a partidirização e a mediatização desse problema não são tão relevantes e eficazes; o paradoxal é que a geografia, por vezes, não parece assim tão relevante: a recente ameaça de morte por lapidação de uma iraniana concentrou várias centenas de pessoas. Não estou a comparar a dimensão moral de uma morte por arremesso de pedras ao desaparecimento de uma linha de comboio, mas apenas a apontar que a indiferença ou a mobilização a uma causa parecem por vezes ultrapassar as distâncias geográficas.

 

A pergunta que fica é: porque é que existe essa indiferença para com a linha do Tua e para o interior em geral? Se a constituição portuguesa abrange todas as geografias, como é que se instalou no debate público uma afectividade próxima às causas de minorias discriminadas (pela classe, cor, raça, sexo) mas ao mesmo tempo os problemas das populações do interior não são parte dessa lista? Porquê tanto silêncio?

 

 

Um deputado com pedalada

TMC, 09.12.09

Acordei com a rádio TSF divulgando anúncios de prevenção rodoviária, seguidos de promoção descarada ao automóvel na publicidade e, pelo meio, um apelo dos bombeiros à necessidade de se rever a modalidade da "marcha de emergência". Tudo isto adveio do choque vergonhoso ocorrido na Avenida da Liberdade entre automóveis do Ministério da Administração Interna e da Assembleia da República. Aparentemente, estavam em "marcha de urgência" para irem a um beberete e uma delas passou um vermelho.

 

E é então que surge esta pequena maravilha. É verdade, nós também temos um lobby, está a crescer, devagarinho, mas é inevitável. O deputado chama-se José Soeiro, está de parabéns e explica porque vai para o parlamento de bicicleta. Todos os dias. Não digo a respectiva cor porque a bicicleta, sendo política, não é ideológica. É apenas algo que está certo.

 

 

 

 

 

Auto-estrada de borla como apoio social

MC, 09.11.09

"O país atravessa uma crise profunda e prolongada cujo fim está ainda distante e que atingiu particularmente a Região Norte. Não aceitamos que, neste contexto de crise, se agravem os custos para os utilizadores das auto-estradas", João Semedo do Bloco de Esquerda ontem ao Público estando em causa uma auto-estrada Porto-Viana do Castelo.  Ainda segundo a notícia o Bloco "alertou" o Governo sobre as "graves consequências sociais económicas" que resultarão da concretização desta medida e pretendeu "estimular" a luta contra a mesma.

Resumindo, o Bloco está preocupado com as consequências sociais sobre os portugueses que são donos de um automóvel, que o utilizam em longas deslocações e que moram numa das regiões mais desenvolvidas do país, e quer portanto que o resto do país lhes pague a portagem.

 


Em Lisboa, a Lisboa e-Nova organiza um encontro sobre O Estacionamento Pago como Meio de Gestão da Mobilidade e Tráfego com a presença do Tiago Farias do IST nesta quinta-feira dia 12.

Para que servem mais sistemas de transportes públicos? Perguntem ao Christoph

MC, 03.08.09

Um amigo alemão não-chamado Christoph, que trabalha numa cidade e vive de 5a a 2a noutra cidade a 300km, explica assim porque não viaja de transportes públicos entre um local e o outro:

Eu tenho que mudar duas vezes de comboio e depois ainda apanhar um autocarro para chegar a casa. Eu bem preferia ir de comboio porque iria a ler, agora assim acaba por não dar jeito.

Reparem que ele não contabiliza as viagens de transportes públicos com o tempo de viagem ou o dinheiro gasto, mas o número de mudanças. Muitas páginas de planeamento de viagens em transportes público (comboios e/ou autocarros) referem para lá do tempo de viagem, o número de mudanças modais que temos de fazer. Todos que andamos de transportes públicos sabemos que este número é fundamental. É mais um horário a fixar, mais um horário a compatibilizar, maior a probabilidade de falhar uma ligação, mais um bilhete a comprar, mais um incómodo, mais um levantar, mais um caminhar, mais uma procura do próximo transporte, mais uma espera, mais uma procura de um lugar, etc. Só refiro o  Christoph, porque no caso dele não se trata de falta de frequência ou de pontualidade dos transportes que acontecem muitas vezes por cá. Ter que mudar é pura e simplesmente tão ou mais inconveniente como demorar mais meia-hora.

Mas nada disto é óbvio para muitos decisores políticos que raramente saem do seu automóvel com motorista. Só assim se explica absurdos como o comboiozinho do Isaltino em Oeiras; o facto das infra-estruturas do metro de Lisboa, o comboio na ponte e o metro da margem sul serem incompatíveis - o que signfica que o sistema à partida obriga a grande maioria das pessoas a apanhar 3 vezes um comboio e que tal nunca poderá ser mudado; a criação de um eléctrico de superfície na periferia de Lisboa independente dos outros sistemas já existentes; mas o pior de tudo são as localizações da estações de comboio. Lisboa, Coimbra, Santarém (inclusivé a nova estação a ser criada!), Leiria, etc. todas elas têm a principal estação bem longe do centro. Quem anda de motorista dificilmente consegue perceber o quão estúpido isto é.

 

Façam um exercício. No Google Maps, procurem a distância a pé entre "Lisboa" e "Gare do Oriente". São 7,5km! Agora tentem descobrir outra cidade onde a distância seja maior.

Madrid 1,4km

Barcelona 3,1km

Sevilha 2,4km

Valencia 0,3km

Roma 1,8km

Milão 2,9km

Turim 1,2km

Nápoles 2,6km

Amesterdão 0,8km

Bruxelas 0,2km

Lyon 2,2km

Boa sorte!

 


Duas frases brilhantes:

Earl Blumenauer, US Congress, "Let's have a moment of silence for every American stuck in traffic on their way to a health club to ride a stationary bicycle".

Santana Lopes: “eu também não quero governar para os carros, quero governar para as pessoas, mas são as pessoas que têm menos posses, que não têm outro forma de se deslocarem sem ser de carro, que precisam dele para levar os filhos às creches”

Iniciativas Legislativas d'Os Verdes

TMC, 12.09.08

 

Sempre que se torne necessário, este espaço propõe-se a apresentar iniciativas partidárias ou de grupos de cidadãos em prol da mobilidade sustentável e uma maior qualidade do espaço público. Sem qualquer afecção partidária ou ideológica, valoriza-se os aspectos pragmáticos de qualquer projecto. Qualquer contribuição é bem-vinda.

 

  

Na véspera do início da Semana Europeia da Mobilidade, que se realiza de 16 a 22 de Setembro, “Os Verdes” entregam na Assembleia da República um conjunto de iniciativas legislativas no âmbito do tema da mobilidade suave.

No sentido de reconhecer a mobilidade suave como uma necessidade para humanizar e despoluir as nossas cidades, “Os Verdes” pretendem introduzir alterações no actual ordenamento jurídico e nas normas estradais com vista não só ao reconhecimento cabal da bicicleta como um verdadeiro meio de transporte, integrando princípios de respeito, valorização e reconhecimento do papel da bicicleta na via pública, mas também garantindo condições para a circulação em segurança de ciclistas em pistas dedicadas.

O Direito à mobilidade Suave é um imperativo das sociedades modernas com vista a melhorar o ambiente e a qualidade de vida nas vias públicas e nas cidades, descongestionar o tráfego e estacionamento e combater as emissões de gases para a atmosfera e o consequente aquecimento global.

Nesse sentido, “Os Verdes” apresentarão propostas para que o Estado assuma uma outra postura com responsabilidade concretas no planeamento urbano e ordenamento territorial e na promoção da bicicleta, pedestrianismo e outros modos de mobilidade suave.

“Os Verdes” convidam os senhores e senhoras jornalistas para uma conferência de imprensa que se realizará no próximo dia 15 de Setembro, pelas 15.00h, na sede do Partido Ecologistas “Os Verdes” (Rua da Boavista, nº83, 3º Dt.º - Lisboa), onde será feita a apresentação das iniciativas anunciadas.

Politiquices... (desabafo)

MC, 14.06.08

Há muitos anos que surgem ocasionalmente "comissões de moradores" e "comissões de utilizadores" de isto e de aquilo. Felizmente há cada vez mais comissões a defender os transportes públicos e a mobilidade sustentável. Sem prejuízo desta luta válida e bem-vinda, lamento que muitas destas comissões tenham outros objectivos políticos por detrás, servindo os seus objectivos formais apenas de capa.

Assim tivemos há tempos uma comissão de defesa dos transportes públicos a ajudar incongruentemente à "festa" numa manifestação pró auto-estradas sem portagens, e ontem tivemos a notícia de uma recém-criada Comissão para a Mobilidade Sustentável no Concelho de Sintra que é contra (!) as portagens nas auto-estradas que ligam este concelho a Lisboa e defende a construção de mais estradas (supostamente para haver mais faixas BUS). Esta incoerência percebe-se bem quando se lê que a comissão da mobilidade sustentada foi criada pela antiga Comissão de Utentes do IC19, a mesma que defendeu acerrimamente a construção da terceira faixa no IC19!

Tenho para mim, que há um partido por detrás de muitas destas comissões. Um partido  que nos tem habituado à criação e multiplicação de mini-associações  - aparentemente independentes - que se apropriam de várias lutas caras aos cidadãos, secando as iniciativas políticas legítimas que vêm verdadeiramente deles.

Por um lado têm obtido vitórias importantes, mas por outro acabam por descredibilizar muitas ONGs impedindo-as de irem mais longe. E Portugal bem precisava de uma forte e sincera "comissão" pelos transportes públicos...

 

Adenda (17/06): A tal Comissão de Mobilidade Sustentável [sic] juntou-se hoje ao buzinão contra o aumento dos combustíveis.  Pode-se ter a opinião que se quiser sobre os preços dos combustíveis, agora achar que a mobilidade sustentável e os combustíveis baratos podem andar de mãos dadas é politiquice pura.

 


Notícia recomendada como contra-ponto ao meu desabafo acima, uma notícia de uma interessante comissão que tem travado uma boa luta: o governo reconheceu que há uma incongruência entre o estudo de Impacto Ambiental e o projecto adjudicado para a CRIL. Mais um exemplo do modo desonesto como este governo tem desrespeitado as avaliações de impacto ambiental. (Notícia enviada pela CRIL Segura)

Uma espécie de manifesto

TMC, 06.09.07

 

Os manifestos costumavam ser redigidos quando havia algo de tão implacável e indubitavelmente prejudicial à vida das pessoas que a passividade de modo algum podia constituir uma opção. Declamavam-se ideais, prometiam-se amanhãs e uniam-se pessoas e vontades contra uma realidade injusta. Algumas linhas procuravam delinear o que está errado, o que se deve fazer para corrigi-lo e o que se obteria caso as prédicas fossem seguidas. As pessoas identificavam-se com algumas frases e palavras, sentiam-se protegidas por elas e dedicavam-se de corpo e alma aos seus propósitos.

 

Hoje, não há manifestos. Há tédio. Indolência. Apatia, hedonismo. Já não se protesta, aceita-se; quem não concordar com esta tese, sofre de imaturidade. Os manifestos são vistos como perigosos, não tanto por apontarem algo de incoerente, mas porque as suas linhas, afirmam os críticos, se revestem de verdades transitórias, subjectivas e que poderão ser vistas como permanentes e absolutas; ora, tal como mostrou o século passado, tal é verdadeiramente indesejável. As ideias são perigosas. No entanto, se elas surgirem, há maneiras de se evitar um confronto. Primeiro, desconfie-se de qualquer grupo de pessoas que se una por uma causa. Examine-se. Depois, disseque-se. De seguida, desmistificam-se os seus propósitos, classificando-os de absurdos. Não se valoriza a iniciativa, a acção, a mudança; faz-se da crítica uma arte literária, seduzindo a opinião pública com os atávicos valores da ordem e da estabilidade e conservando o actual estado das coisas. E continuamos a queixarmo-nos dessa dor que nos mói, devagarinho, o nosso caro fado português.

 

Sempre vivi em Lisboa e há de ser sempre a minha cidade. Não se escolhe onde se nasce, tal como a família. O que hoje se passa na capital é apenas e só, espúrio. Presenciar a violação contínua do património arquitectónico, do espaço público, das ruas, do rio e das vistas, por gerações de políticos e pelos cidadãos é um convivo diário com o nojo. A cidade não é dos lisboetas, é de uma coisa anónima e omnipresente que a tem vindo a engolir. Derruba, embarga, edifica, constrói, proíbe, cancela, separa, mutila, fere, estropia. A cidade, o seu centro, está a fenecer. O símbolo deste tétrico banquete em que a cidade tem sido servida à modernidade, com pompa e circunstância, é o automóvel. O trânsito é caótico e desnecessário, estacionar a viatura tornou-se numa arte e o património vai sendo preterido para mais estradas, mais acessos viários ou mais parques de estacionamento.

 

Se as principais vantagens de um automóvel são o conforto, a segurança e a rapidez, expliquem-me os seguintes paradoxos: quem se sente confortável numa fila de trânsito, fechado num caixão metalizado? Um hino à liberdade, afirmam uns. Como pode haver liberdade num carro se é necessário obedecer aos semáforos e a demais sinalizações? Se é necessário conviver com o excessivo número de veículos, fumos, stress, buzinas? Quanto à segurança, até Agosto de 2007 morreram mais pessoas nas estradas portuguesas do que as mesmas em 2006. Rapidez? O carro não aproxima pessoas. O uso abusivo do veículo particular tem levado à segregação da população para os subúrbios; ao empobrecimento das ruas; à marginalização dos peões; à qualidade do ar atmosférico; à falta de vitalidade do comércio tradicional. É um nojo e tanto mais por ser tão flagrante. Uma comunicação social incipiente rotula medidas contra os automóveis de ridículas. Andar de bicicleta é um absurdo. Fechar ruas ao trânsito é um atentado à liberdade. Mais quejandos levariam ao vómito e à repulsa honesta.

 

Desencorajar o uso do automóvel enquanto se promovem outras medidas de urbanismo destinadas ao usufruto correcto das ruas, das praças e dos demais espaços públicos não é uma panaceia universal, mas são medidas urgentes para Lisboa. A falta de clarividência nesta matéria dos sucessivos executivos autárquicos, compactuados com alguns comentadores e jornalistas, é tão só e apenas um sintoma. Um sintoma da irracionalidade dos dias de hoje.