Tão pobre que nem tinha dinheiro para a portagem
A imagem do automóvel como bem de primeiríssima necessidade não cessa de me surpreender. Na "À Mesa com a Crise", a última edição da Reportagem TSF (um excelente programa radiofónico) o tema é a crise, o desemprego e a pobreza. Dir-se-ia que se falaria de pessoas com fome, sem dinheiro para cuidados de saúde, pessoas em desespero. Sim fala-se nisso, mas há várias referências a automóveis. A certa altura, uma funcionária de uma instituição de caridade relata "... começam a não ter dinheiro para as portagens, até nos diziam «nós depois até já íamos pela estrada nacional, mas já nem pela estrada nacional conseguíamos ir porque não tínhamos gasolina e ficámos confinados a 4 paredes»".
E não se fala só em pessoas com vergonha em admitir que têm fome ou que não têm dinheiro. Há uma mulher que fala na vergonha de ter o carro avariado: "dávamos desculpas às pessoas para não dizer que tínhamos a carrinha avariada".
O que dirão estas pessoas de mim, que não tenho carro há 11 anos? O que dirão elas de muitíssimas pessoas que nem a carta têm? Seremos etíopes à espera da ajuda da Madonna? Estarei eu confinado a 4 paredes? Será que deverei ter vergonha de dizer que não tenho carro?
Mas não são só as próprias pessoas que o referem. São os funcionários das instituições de solidariedade que acham este aspecto suficientemente importante ao ponto de acrescentarem isto à sua descrição das situações de pobreza. É a jornalista que escolheu estas citações entre as várias horas de gravações audio que tinha, onde haveria certamente alguém sem dinheiro para uma operação ou a viver à custa de ajudas há longo tempo.
Como já escrevi em tempos, será que ainda veremos a velha canção do Sérgio Godinho transformada em "O paz, a pão, a habitação, a saúde, a educação, e o carro novo"?
A ler: The Politics of Happiness sobre Bogotá no Cidade-Ideal.